Almir Rogério Pereira
As
manifestações são uma interpelação ao sistema político.
Representam a indignação com um sistema representativo que já não
representa, pois quando as pessoas vão em grande número às ruas
protestar é porque já sabem que só elas mesmas, diretamente, são
capazes de fazer ecoar suas vozes. A multidão tomou a representação
de si para si mesma. Pesquisas de opinião feitas até agora
demonstram que além de se representar, a multidão representa também
uma ampla maioria da população. A representação também se
deslocou da mídia eletrônica para a mídia digital. O futuro disso
ainda não sabemos, mas a vigilância que o Estado-espião
Norte-americano instaurou sobre a comunicação digital dá uma forte
pista do quanto o poder teme a representação digital e as multidões
na rua que ela gera.
Desde o
início das manifestações em junho de 2013, aconteceram inúmeras
demonstrações de repúdio dos manifestantes às maiores empresas de
televisão aberta do país. Em São Paulo uma unidade móvel de
transmissão da TV Record foi incendiada por pessoas que protestavam.
No Rio um veículo de reportagem do SBT também foi consumido por
chamas produzidas pelos manifestantes.
É muito
comum nas passeatas ouvir-se as pessoas gritando em uníssono que a
TV Globo apoiou a Ditadura. Foi em frente às sedes desta emissora, a
Globo, tanto em São Paulo quanto no Rio, que aconteceram, nas
últimas semanas, manifestações de milhares de pessoas para
repudiar o papel dela na sociedade brasileira. O repúdio às TVs é
tão forte que os repórteres se negam, por medo, a ir para as
manifestações com algum tipo de identificação que os associe às
maiores empresas de TV do Brasil, especialmente à Globo. Qual será
a causa de tanta repulsa? O que fazem as TVs em sua cobertura
jornalística dos protestos para gerarem tanta indignação?
Enquanto as
passeatas se resumiam ao MPL (Movimento Passe Livre) em São Paulo,
as TVs faziam coro à postura repressiva da polícia do PSDB. No dia
13 de junho, depois de uma noite de inúmeras cenas de truculência
policial contra os manifestantes do MPL, contra jornalistas e contra
a população em geral, um comentarista do noticiário da TV Globo,
chamado Arnaldo Jabor, disse que os transtornos à ordem pública
causados pelas passeatas do MPL eram equivalentes às ações do PCC,
a maior máfia do estado de São Paulo. A postura infame deste
comentarista foi digna do Henrique VIII, de Shakespeare.
A
associação entre essa fala de Jabor e a TV Globo, onde ele continua
recebendo salário, foi automática: para o espectador médio Jabor
falava em nome da Globo, portanto, seu reacionarismo foi escutado
como palavra da TV Globo. Por mais que ele ou ela se desculpem, o que
foi dito está dito. O silêncio talvez fosse mais decoroso que a
declaração posterior dele mudando diametralmente de posição. No
jargão popular se diz: essa mudança não “cola”. Jabor acabou
se tornando sinônimo de cinismo, quando citado em rodas de conversa
nas manifestações.
Quando as
passeatas se nacionalizaram levando centenas de milhares às ruas, no
dia 17 de junho, uma nova forma de cobertura jornalística delas se
fez surgir. As TVs passaram a apoiar as manifestações em coro, mas
com um porém: desde que elas se mantivessem separadas do vandalismo.
Com a suspensão do supereu político, que nos impele permanentemente
ao gozo da submissão ao Estado, pela posição desejante da
multidão, as TVs passaram a lutar para readquirir sua posição de
“príncipe infame” (Bandeira da Silveira) sobre as massas,
prescrevendo manifestações sem o excesso do vandalismo. Por um lado
elas diagnosticam um excesso demoníaco, por outro elas reivindicam
uma ordem celeste nas manifestações. Assim trabalham por uma
política impossível até que todos retornemos ao gozo da submissão
por impossibilidade de atender aos imperativos desse supereu
Televisivo infame.
Como ter
manifestações celestes numa sociedade de humanos? De humanos
brasileiros? De um ponto de vista celeste qualquer coisa humana é
demoníaca. Como não haverá saques durante manifestações feitas
dentro de uma sociedade que deixa milhões e milhões de adolescentes
abandonados em escolas que nem merecem este nome? Adolescentes cujo
único reconhecimento desejado é o da sociedade de consumo, para a
qual estão excluídos para sempre por falta de “qualificação”?
Como não haverá depredações nas passeatas feitas dentro de uma
sociedade brutalmente desigual, em que milhões e milhões de jovens
vivem em guetos favelados ou periféricos, nos quais, além de terem
que suportar a ausência de serviços públicos básicos como a rede
de esgoto, ainda têm que baixar a cabeça para a brutalidade do
narcotráfico, de milícias e da polícia militar? Como impedir que a
raiva de alguns desses jovens seja extravasada nas vidraças etc?
Como impedir que a miséria moral de outros seja agenciada por
bandidos de todas as espécies e, por alguns trocados oferecidos por
tais bandidos, que alguns desses jovens estejam nas manifestações
para tumultuar? Levando medo aos manifestantes e àqueles que
assistem de casa pela TV a esses tumultos, possivelmente
orquestrados.
O pior de
tudo é não aceitar que uma manifestação só é um espaço de
liberdade e democracia porque ela suspende a ordem vigente pelo
desejo dos manifestantes. Por isso tanto as TVs quanto a oligarquia
política sofrem de “demofobia” (fobia de povo). A ninguém
interessa mais a dissolução das manifestações em atos de
violência generalizada que à oligarquia política que nos governa
(tanto a facção oligárquica que usa fantasias de esquerda quanto a
que usa fantasias de direita), e às TVs que são o porta-voz de seu
espectador médio, que funciona pelo gozo da submissão ao supereu
estatal-policial.
Se
quisessem praticar jornalismo as TVs poderiam já ter iniciado um
trabalho de apuração da ação do lumpesinato político. Fenômeno
secular elucidado já no século XIX por Marx, em seu famoso texto O
Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Só para lembrar: Luís,
sobrinho de Napoleão, agenciou uma multidão de indivíduos
desclassificados, organizados numa máfia chefiada por ele,
denominada Sociedade 10 de dezembro. Com essa tropa de choque,
Bonaparte sobrinho aterrorizou a burguesia e a aristocracia e assumiu
o controle do Estado Francês. Um dos mais importantes do mundo
naquela época.
No Brasil
atual sobram exemplos de práticas políticas lumpen povoando o
Estado, em nível federal, estadual e municipal. Só para lembrar dos
mais chocantes: em 11 de agosto de 2011 a Juíza Patrícia Acioli foi
assassinada por PMs do estado do Rio de Janeiro com 16 tiros. Entre
os acusados está um coronel. Esta juíza, que tinha condenado mais
de 60 PMs por formação de milícias, andava sem escolta. Sua
família denunciou isso como omissão do TJ-RJ no fornecimento de
segurança para a juíza.
Em 2012
ficou explícita a ligação do mafioso Carlinhos Cachoeira com a
cúpula do Estado de Goiás, mas a CPI do Cachoeira acabou em pizza,
pois a investigação do esquema exigia a investigação da
Construtora Delta e a convocação do Governador do Estado do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral, para depor, o que foi impedido bela bancada
governista (PT, PMDB etc) em troca de proteção ao Governador do
Goiás, Marcone Perillo, do PSDB.
A CPI das
milícias na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro, finalizada em
novembro de 2008, cassou o mandato e colocou na cadeia vários
políticos (deputados estaduais e vereadores), inclusive um
ex-secretário de polícia, então deputado estadual, por comandarem
e participarem de esquemas mafiosos milionários, que controlam
numerosas populações em extensas áreas urbanas no estado. Esta CPI
também prendeu centenas de agentes públicos milicianos (bombeiros,
agentes penitenciários, policiais, militares da forças armadas
etc).
Recentemente
a prisão do maior traficante do Rio de Janeiro, o Nem, gerou uma
disputa entre policiais e só aconteceu de fato porque o acusado foi
levado para fora da alçada da polícia estadual: ele foi entregue à
Polícia Federal.
Em recente
passagem pelo Brasil, o sociólogo Manuel Castells, maior
especialista em movimentos sociais da era digital, segundo a revista
Istoé, disse em entrevista a esta revista, que como “há
violência e vandalismo na sociedade, é impossível
preveni-los [nas manifestações],
embora os movimentos em toda parte tentem controlá-los porque eles
sabem que a violência é a força mais destrutiva de um movimento
social. Às vezes, em alguns países, provocadores apoiados pela
polícia criam a violência para deslegitimar o movimento.” É
uma autoridade no assunto movimentos sociais digitais, quem está
falando. Será que a infiltração de agentes provocadores nas
manifestações, por parte da polícia, está acontecendo no Brasil?
Não caberia às TVs apurarem essa hipótese ao invés de atribuírem
automaticamente o vandalismo aos manifestantes?
Diante de
seu poderio político, bélico, econômico e territorial será que o
lumpesinato político, e no caso do Rio de Janeiro eles são
explicitamente uma grande parte das forças policiais, vai assistir
parado às manifestações que reivindicam direitos sociais e uma
reforma da política? Será que o lumpesinato político acha que as
manifestações vão beneficiá-lo clamando contra todas as formas de
corrupção e contra a truculência policial? Seria delírio colocar
a hipótese de que podem haver homens pagos pelos lumpen políticos,
inclusive milicianos policiais, para causar vandalismo nas
manifestações populares?
No último
dia 11 de julho os membros do movimento Black Bloc denunciaram uma
tentativa de incriminá-los com uma caixa de coquetéis molotov na
avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Estes coquetéis apresentavam
sinais industriais, segundo o Black Bloc, já que todas as garrafas
eram idênticas. A cobertura das TVs sobre este fato adotou uma
abordagem infame e criminalizadora do Black Bloc. O Black Bloc foi
apresentado como um grupo de homens vestidos de preto e mascarados,
por causa dos quais o tumulto se iniciou, quando, na verdade o
tumulto se iniciou porque eles resistiram à tentativa de policiais
P2 (paisanos) de prendê-los sob a acusação de portarem os tais
coquetéis.
As TVs
tratam a resistência dos grupos anarquistas anticapitalistas contra
a violência policial como um ato de vandalismo. O Black Bloc, por
exemplo, em comunicados públicos, que podem ser lidos no Facebook,
afirma que seus membros vão às manifestações de rosto coberto,
com máscaras contra gases e com escudos, porque se colocam na linha
de frente das manifestações e ficam cara a cara com os policiais. O
objetivo deles é devolver à tropa de choque todas as bombas que ela
joga contra a multidão, ou seja, o Black Bloc tem um claro objetivo
defensivo e desafiador. Será que insubmissão desarmada diante da
polícia significa vandalismo?
Com a
disseminação da infâmia contra as manifestações, através do
significante vandalismo, as TVs não fazem apenas a população
submissa ficar em casa e não se juntar aos que protestam nas ruas.
As TVs também trabalham para instaurar a lógica do supereu policial
dentro dos próprios manifestantes. No último dia 11 de julho foi o
que ocorreu no Centro do Rio de Janeiro. As centrais sindicais
pagaram mais de cem brutamontes para policiar a passeata que caminhou
pela Av. Rio Branco para “manter a ordem”. A lógica policial foi
internalizada pela parte sindical das manifestações. O povo na rua
estabelece a prevalência da liberdade e da responsabilidade
individual dentro da multidão. Ter “policiais” entre os
manifestantes transforma as manifestações em simulacros de
protesto.
O significante vandalismo não serve
para informar, serve sim para confundir e disseminar a infâmia. Em
todo protesto popular autêntico há liberdade e onde há liberdade
irrompe a violência, seja a violência daqueles que defendem a
liberdade seja a daqueles que querem interromper a liberdade. No
lugar do significante vandalismo é preciso colocar as questões: que
tipos de violência política estão ocorrendo nas manifestações?
Quem são seus agentes? O que eles defendem e como o fazem nas ruas?
Na questão da representação
midiática o paradoxo da atual quebra de paradigma criou uma situação
no mínimo curiosa: a fúria da multidão contra as TVs,
principalmente com a maior delas, a Globo. No afã de construir o
novo partes da multidão digital mira na velha mídia eletrônica
querendo restringir a liberdade de expressão de imensos
conglomerados empresarias, sócios de negócios bilionários como a
Copa e as Olimpíadas, conglomerado que são inquilinos de concessões
públicas de um Estado capitalista nada tolerante a críticas, mesmo
as críticas de uma mídia corporativa poderosa.
A mídia
eletrônica, neste momento, tenta achar um lugar entre a fúria da
multidão e a desconfiança da oligarquia política. Na Argentina a
oligarquia política canalizou a raiva da multidão contra a mídia
eletrônica reintroduzindo o mecanismo autoritário da censura. Isso
não em benefício da multidão, mas em benefício da própria
oligarquia política, que mente até sobre os índices de inflação.
Na década de 70, durante ditadura civil-militar aqui no Brasil, o
ministro da fazenda do Governo Médici, Delfim Neto, forjou índices
de inflação menores que a realidade, o que não pode ser denunciado
por ninguém, já que imperava a censura prévia em todos os veículos
de expressão coletiva.
Chamar pelo
controle da mídia através da oligarquia política parece um tiro no
pé. Talvez seja mais inteligente combater toda forma de vigilância,
exigindo que os EUA deem anistia a Edward Snowden e cessem a violação
da 4ª Emenda. Outra forma de combater o poder da mídia eletrônica
sem recorrer à censura de Estado é reivindicando que a internet
seja universalizada radicalmente, através de algo como um Wi-Fi
grátis em todo território nacional. Se as TVs abertas são de
graça, porque a internet não pode ser? Há países que já adotaram
isso. Essa ideia diminuiria a audiência das TVs, portanto seu poder,
e o poder econômico das empresas de telefonia, sem ferir o princípio
fundamental da liberdade de expressão e sem recorrer ao
autoritarismo de Estado, que no final só se reforça a si mesmo e à
oligarquia que o controla, quando é usado.
Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirCom muita clareza descreve os últimos acontecimentos, nos relembrando de fatos que por ora nos esquecemos.
Além disso, nos permite visualizar as tramas dos fatos presentes em nosso cotidiano, levando-nos a muitas reflexões.
Valeria acrescentar a última manifestação que teve como alvo o "ninho de descanso" do governador da nossa cidade, local escolhido sem puro acaso!
Forte abraço!!
Obrigado Ana.
ExcluirAlmir,você colocou em palavras tudo o que penso.Parabéns,professor!Texto belíssimo!!Tomarei a liberdade de enviá-lo para amigos e pesquisadores que conheço.
ResponderExcluirCom carinho,Valéria Forti
Obrigado Valéria.
ExcluirParabens pelo texto, acredito que é um excelente material para discutir a Sociedade que queremos, Marisa Abrunhosa
ResponderExcluirObrigado Marisa.
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