quarta-feira, 17 de julho de 2013

Vandalismo

Almir Rogério Pereira


As manifestações são uma interpelação ao sistema político. Representam a indignação com um sistema representativo que já não representa, pois quando as pessoas vão em grande número às ruas protestar é porque já sabem que só elas mesmas, diretamente, são capazes de fazer ecoar suas vozes. A multidão tomou a representação de si para si mesma. Pesquisas de opinião feitas até agora demonstram que além de se representar, a multidão representa também uma ampla maioria da população. A representação também se deslocou da mídia eletrônica para a mídia digital. O futuro disso ainda não sabemos, mas a vigilância que o Estado-espião Norte-americano instaurou sobre a comunicação digital dá uma forte pista do quanto o poder teme a representação digital e as multidões na rua que ela gera.
 
 
Desde o início das manifestações em junho de 2013, aconteceram inúmeras demonstrações de repúdio dos manifestantes às maiores empresas de televisão aberta do país. Em São Paulo uma unidade móvel de transmissão da TV Record foi incendiada por pessoas que protestavam. No Rio um veículo de reportagem do SBT também foi consumido por chamas produzidas pelos manifestantes.
 
 
É muito comum nas passeatas ouvir-se as pessoas gritando em uníssono que a TV Globo apoiou a Ditadura. Foi em frente às sedes desta emissora, a Globo, tanto em São Paulo quanto no Rio, que aconteceram, nas últimas semanas, manifestações de milhares de pessoas para repudiar o papel dela na sociedade brasileira. O repúdio às TVs é tão forte que os repórteres se negam, por medo, a ir para as manifestações com algum tipo de identificação que os associe às maiores empresas de TV do Brasil, especialmente à Globo. Qual será a causa de tanta repulsa? O que fazem as TVs em sua cobertura jornalística dos protestos para gerarem tanta indignação?
 
 
Enquanto as passeatas se resumiam ao MPL (Movimento Passe Livre) em São Paulo, as TVs faziam coro à postura repressiva da polícia do PSDB. No dia 13 de junho, depois de uma noite de inúmeras cenas de truculência policial contra os manifestantes do MPL, contra jornalistas e contra a população em geral, um comentarista do noticiário da TV Globo, chamado Arnaldo Jabor, disse que os transtornos à ordem pública causados pelas passeatas do MPL eram equivalentes às ações do PCC, a maior máfia do estado de São Paulo. A postura infame deste comentarista foi digna do Henrique VIII, de Shakespeare.
 
 
A associação entre essa fala de Jabor e a TV Globo, onde ele continua recebendo salário, foi automática: para o espectador médio Jabor falava em nome da Globo, portanto, seu reacionarismo foi escutado como palavra da TV Globo. Por mais que ele ou ela se desculpem, o que foi dito está dito. O silêncio talvez fosse mais decoroso que a declaração posterior dele mudando diametralmente de posição. No jargão popular se diz: essa mudança não “cola”. Jabor acabou se tornando sinônimo de cinismo, quando citado em rodas de conversa nas manifestações.
 
 
Quando as passeatas se nacionalizaram levando centenas de milhares às ruas, no dia 17 de junho, uma nova forma de cobertura jornalística delas se fez surgir. As TVs passaram a apoiar as manifestações em coro, mas com um porém: desde que elas se mantivessem separadas do vandalismo. Com a suspensão do supereu político, que nos impele permanentemente ao gozo da submissão ao Estado, pela posição desejante da multidão, as TVs passaram a lutar para readquirir sua posição de “príncipe infame” (Bandeira da Silveira) sobre as massas, prescrevendo manifestações sem o excesso do vandalismo. Por um lado elas diagnosticam um excesso demoníaco, por outro elas reivindicam uma ordem celeste nas manifestações. Assim trabalham por uma política impossível até que todos retornemos ao gozo da submissão por impossibilidade de atender aos imperativos desse supereu Televisivo infame.
 
 
Como ter manifestações celestes numa sociedade de humanos? De humanos brasileiros? De um ponto de vista celeste qualquer coisa humana é demoníaca. Como não haverá saques durante manifestações feitas dentro de uma sociedade que deixa milhões e milhões de adolescentes abandonados em escolas que nem merecem este nome? Adolescentes cujo único reconhecimento desejado é o da sociedade de consumo, para a qual estão excluídos para sempre por falta de “qualificação”? Como não haverá depredações nas passeatas feitas dentro de uma sociedade brutalmente desigual, em que milhões e milhões de jovens vivem em guetos favelados ou periféricos, nos quais, além de terem que suportar a ausência de serviços públicos básicos como a rede de esgoto, ainda têm que baixar a cabeça para a brutalidade do narcotráfico, de milícias e da polícia militar? Como impedir que a raiva de alguns desses jovens seja extravasada nas vidraças etc? Como impedir que a miséria moral de outros seja agenciada por bandidos de todas as espécies e, por alguns trocados oferecidos por tais bandidos, que alguns desses jovens estejam nas manifestações para tumultuar? Levando medo aos manifestantes e àqueles que assistem de casa pela TV a esses tumultos, possivelmente orquestrados.
 
 
O pior de tudo é não aceitar que uma manifestação só é um espaço de liberdade e democracia porque ela suspende a ordem vigente pelo desejo dos manifestantes. Por isso tanto as TVs quanto a oligarquia política sofrem de “demofobia” (fobia de povo). A ninguém interessa mais a dissolução das manifestações em atos de violência generalizada que à oligarquia política que nos governa (tanto a facção oligárquica que usa fantasias de esquerda quanto a que usa fantasias de direita), e às TVs que são o porta-voz de seu espectador médio, que funciona pelo gozo da submissão ao supereu estatal-policial.
 
 
Se quisessem praticar jornalismo as TVs poderiam já ter iniciado um trabalho de apuração da ação do lumpesinato político. Fenômeno secular elucidado já no século XIX por Marx, em seu famoso texto O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Só para lembrar: Luís, sobrinho de Napoleão, agenciou uma multidão de indivíduos desclassificados, organizados numa máfia chefiada por ele, denominada Sociedade 10 de dezembro. Com essa tropa de choque, Bonaparte sobrinho aterrorizou a burguesia e a aristocracia e assumiu o controle do Estado Francês. Um dos mais importantes do mundo naquela época.
 
 
No Brasil atual sobram exemplos de práticas políticas lumpen povoando o Estado, em nível federal, estadual e municipal. Só para lembrar dos mais chocantes: em 11 de agosto de 2011 a Juíza Patrícia Acioli foi assassinada por PMs do estado do Rio de Janeiro com 16 tiros. Entre os acusados está um coronel. Esta juíza, que tinha condenado mais de 60 PMs por formação de milícias, andava sem escolta. Sua família denunciou isso como omissão do TJ-RJ no fornecimento de segurança para a juíza.
 
 
Em 2012 ficou explícita a ligação do mafioso Carlinhos Cachoeira com a cúpula do Estado de Goiás, mas a CPI do Cachoeira acabou em pizza, pois a investigação do esquema exigia a investigação da Construtora Delta e a convocação do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, para depor, o que foi impedido bela bancada governista (PT, PMDB etc) em troca de proteção ao Governador do Goiás, Marcone Perillo, do PSDB.
 
 
A CPI das milícias na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro, finalizada em novembro de 2008, cassou o mandato e colocou na cadeia vários políticos (deputados estaduais e vereadores), inclusive um ex-secretário de polícia, então deputado estadual, por comandarem e participarem de esquemas mafiosos milionários, que controlam numerosas populações em extensas áreas urbanas no estado. Esta CPI também prendeu centenas de agentes públicos milicianos (bombeiros, agentes penitenciários, policiais, militares da forças armadas etc).
 
 
Recentemente a prisão do maior traficante do Rio de Janeiro, o Nem, gerou uma disputa entre policiais e só aconteceu de fato porque o acusado foi levado para fora da alçada da polícia estadual: ele foi entregue à Polícia Federal.
 
 
Em recente passagem pelo Brasil, o sociólogo Manuel Castells, maior especialista em movimentos sociais da era digital, segundo a revista Istoé, disse em entrevista a esta revista, que como “há violência e vandalismo na sociedade, é impossível preveni-los [nas manifestações], embora os movimentos em toda parte tentem controlá-los porque eles sabem que a violência é a força mais destrutiva de um movimento social. Às vezes, em alguns países, provocadores apoiados pela polícia criam a violência para deslegitimar o movimento.” É uma autoridade no assunto movimentos sociais digitais, quem está falando. Será que a infiltração de agentes provocadores nas manifestações, por parte da polícia, está acontecendo no Brasil? Não caberia às TVs apurarem essa hipótese ao invés de atribuírem automaticamente o vandalismo aos manifestantes?
 
 
Diante de seu poderio político, bélico, econômico e territorial será que o lumpesinato político, e no caso do Rio de Janeiro eles são explicitamente uma grande parte das forças policiais, vai assistir parado às manifestações que reivindicam direitos sociais e uma reforma da política? Será que o lumpesinato político acha que as manifestações vão beneficiá-lo clamando contra todas as formas de corrupção e contra a truculência policial? Seria delírio colocar a hipótese de que podem haver homens pagos pelos lumpen políticos, inclusive milicianos policiais, para causar vandalismo nas manifestações populares?
 
 
No último dia 11 de julho os membros do movimento Black Bloc denunciaram uma tentativa de incriminá-los com uma caixa de coquetéis molotov na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Estes coquetéis apresentavam sinais industriais, segundo o Black Bloc, já que todas as garrafas eram idênticas. A cobertura das TVs sobre este fato adotou uma abordagem infame e criminalizadora do Black Bloc. O Black Bloc foi apresentado como um grupo de homens vestidos de preto e mascarados, por causa dos quais o tumulto se iniciou, quando, na verdade o tumulto se iniciou porque eles resistiram à tentativa de policiais P2 (paisanos) de prendê-los sob a acusação de portarem os tais coquetéis.
 
 
As TVs tratam a resistência dos grupos anarquistas anticapitalistas contra a violência policial como um ato de vandalismo. O Black Bloc, por exemplo, em comunicados públicos, que podem ser lidos no Facebook, afirma que seus membros vão às manifestações de rosto coberto, com máscaras contra gases e com escudos, porque se colocam na linha de frente das manifestações e ficam cara a cara com os policiais. O objetivo deles é devolver à tropa de choque todas as bombas que ela joga contra a multidão, ou seja, o Black Bloc tem um claro objetivo defensivo e desafiador. Será que insubmissão desarmada diante da polícia significa vandalismo?
 
 
Com a disseminação da infâmia contra as manifestações, através do significante vandalismo, as TVs não fazem apenas a população submissa ficar em casa e não se juntar aos que protestam nas ruas. As TVs também trabalham para instaurar a lógica do supereu policial dentro dos próprios manifestantes. No último dia 11 de julho foi o que ocorreu no Centro do Rio de Janeiro. As centrais sindicais pagaram mais de cem brutamontes para policiar a passeata que caminhou pela Av. Rio Branco para “manter a ordem”. A lógica policial foi internalizada pela parte sindical das manifestações. O povo na rua estabelece a prevalência da liberdade e da responsabilidade individual dentro da multidão. Ter “policiais” entre os manifestantes transforma as manifestações em simulacros de protesto.
 
 
O significante vandalismo não serve para informar, serve sim para confundir e disseminar a infâmia. Em todo protesto popular autêntico há liberdade e onde há liberdade irrompe a violência, seja a violência daqueles que defendem a liberdade seja a daqueles que querem interromper a liberdade. No lugar do significante vandalismo é preciso colocar as questões: que tipos de violência política estão ocorrendo nas manifestações? Quem são seus agentes? O que eles defendem e como o fazem nas ruas?
 
 
Na questão da representação midiática o paradoxo da atual quebra de paradigma criou uma situação no mínimo curiosa: a fúria da multidão contra as TVs, principalmente com a maior delas, a Globo. No afã de construir o novo partes da multidão digital mira na velha mídia eletrônica querendo restringir a liberdade de expressão de imensos conglomerados empresarias, sócios de negócios bilionários como a Copa e as Olimpíadas, conglomerado que são inquilinos de concessões públicas de um Estado capitalista nada tolerante a críticas, mesmo as críticas de uma mídia corporativa poderosa.
 
 
A mídia eletrônica, neste momento, tenta achar um lugar entre a fúria da multidão e a desconfiança da oligarquia política. Na Argentina a oligarquia política canalizou a raiva da multidão contra a mídia eletrônica reintroduzindo o mecanismo autoritário da censura. Isso não em benefício da multidão, mas em benefício da própria oligarquia política, que mente até sobre os índices de inflação. Na década de 70, durante ditadura civil-militar aqui no Brasil, o ministro da fazenda do Governo Médici, Delfim Neto, forjou índices de inflação menores que a realidade, o que não pode ser denunciado por ninguém, já que imperava a censura prévia em todos os veículos de expressão coletiva.
 
 
Chamar pelo controle da mídia através da oligarquia política parece um tiro no pé. Talvez seja mais inteligente combater toda forma de vigilância, exigindo que os EUA deem anistia a Edward Snowden e cessem a violação da 4ª Emenda. Outra forma de combater o poder da mídia eletrônica sem recorrer à censura de Estado é reivindicando que a internet seja universalizada radicalmente, através de algo como um Wi-Fi grátis em todo território nacional. Se as TVs abertas são de graça, porque a internet não pode ser? Há países que já adotaram isso. Essa ideia diminuiria a audiência das TVs, portanto seu poder, e o poder econômico das empresas de telefonia, sem ferir o princípio fundamental da liberdade de expressão e sem recorrer ao autoritarismo de Estado, que no final só se reforça a si mesmo e à oligarquia que o controla, quando é usado.
 
 

6 comentários:

  1. Parabéns pelo texto!
    Com muita clareza descreve os últimos acontecimentos, nos relembrando de fatos que por ora nos esquecemos.
    Além disso, nos permite visualizar as tramas dos fatos presentes em nosso cotidiano, levando-nos a muitas reflexões.
    Valeria acrescentar a última manifestação que teve como alvo o "ninho de descanso" do governador da nossa cidade, local escolhido sem puro acaso!
    Forte abraço!!

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  2. Almir,você colocou em palavras tudo o que penso.Parabéns,professor!Texto belíssimo!!Tomarei a liberdade de enviá-lo para amigos e pesquisadores que conheço.
    Com carinho,Valéria Forti

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  3. Parabens pelo texto, acredito que é um excelente material para discutir a Sociedade que queremos, Marisa Abrunhosa

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